É curioso como a teoria espírita da reencarnação tem um apelo tão reconfortante. A ideia de que tudo se resolve depois da morte, de que há uma espécie de “serviço ao cliente espiritual” cuidando do nosso destino. E o mais interessante é que muitos que nem são espíritas adotam essa crença como se fosse uma verdade silenciosa — um consolo discreto embutido na rotina.
Para aqueles que não estão inteirados sobre essa teoria eu explico, por alto. Existe o corpo físico e o espírito. Quando morremos, deixamos o corpo para trás (literalmente descartado como um casaco velho) e seguimos, em espírito, para um lugar especial. Nesse lugar existem seres iluminados, claro, que sabem exatamente o que fazer com a nossa alma desorientada. Depois de um tempo nesse “departamento de triagem celestial”, voltamos à vida. Reencarnamos num corpo novinho em folha, um recém-nascido, prontos para mais uma rodada. Um ciclo, dizem.
O objetivo desse sistema é, além de, pagar pelos erros morais cometidos em vidas passadas e evoluir a nível moral, espiritual, amorosa, entre outras. Uma forma de moldar o nosso espírito. Mas a cada nova vida, esquecemos completamente da anterior. Isso, segundo eles, é para que a evolução seja “natural”. Faz sentido, certo? Esquecer o motivo pelo qual estamos a pagar, porque aprender no escuro é sempre mais eficaz. Mas, enfim... não fui eu quem escreveu esse mesmo sistema.
A ideia é essa: pagar até limpar o histórico e, então, alcançar um patamar elevado de luz, amor e... sei lá, talvez um crachá dourado de espírito veterano.
Agora, vamos imaginar a seguinte imagem.
O gado, as vacas e os bois. Nós não falamos com eles, não sabemos o que se passa nas cabeças deles. O dono cuida deles com zelo. Dá comida, protege, até os chama pelos nomes. Talvez até sinta afeto. Mas sabe que, no final, vão morrer. É o destino deles: alimentar quem está no topo da cadeia.
Seria então absurdo pensar que, para suportar a rotina miserável, as vacas criem sua própria narrativa de esperança? Algo do tipo: “Tudo isto é temporário, logo vamos para um lugar melhor... a grande casa... o campo eterno.” E se, para elas, que não conhecem o matadouro, aquele corredor branco com luz forte no fim for, de fato, o paraíso e não um choque elétrico mortal?
Eu nunca vi um adepto da reencarnação a se perguntar o que vem depois do tão falado “nível espiritual elevado”. Após o nirvana. Há teorias do que seja e todas elas são muito bem aceites sem grandes indagações. Talvez porque a ideia de que estamos sendo conduzidos por seres superiores já seja reconfortante o suficiente. Mas quem disse que eles nos amam? Quem garante que não somos apenas gado em um sistema mais sofisticado? Gado espiritual, muito bem tratado, claro — porque carne espiritual ruim não serve.
Não estou a dizer que somos como gado para eles, mas quem nos garante que não somos?

Add comment
Comments